O fio da narração e a viagem do pesquisador têm precedência sobre os lugares, que, por sua vez, acompanham a história; não são o objeto principal, apesar de serem indispensáveis à compreensão das coisas.
Anne Cauquelin
Quando falamos em paisagem, provavelmente a noção primeira que nos vem de encontro está relacionada à natureza. Esta associação entre natureza e paisagem foi construída culturalmente ao longo do tempo. Não há nenhuma menção à ideia de "paisagem" na Grécia antiga[1], embora a exuberância do entorno e o devir filosófico desta civilização fossem o ecossistema ideal para incubar esta concepção. Esta aproximação remontaria ao quattrocento, quando se inicia toda uma tradição na pintura segundo a qual a paisagem seria um equivalente da natureza. “Desse modo, a natureza só podia ser percebida por meio do seu quadro, a perspectiva, apesar de artificial, tornava-se um dado de natureza, e as paisagens em sua diversidade pareciam a justa e poética representação do mundo” (Cauquelin, 2007, pág. 7).
Passaram-se séculos até que a associação fosse estendida a novos domínios. As descobertas científicas da virada do século XIX para o XX, relatividade, psicologia, neurociência, etc.; junto às invenções técnicas, fotografia, cinema, rádio, pavimentaram a expansão do campo da arte por densos, abstratos e desconhecidos territórios. Não me refiro aqui à abstração geométrica (também característica do período), mas sim à capacidade humana de elaborar pensamentos complexos que penetram fundo nos latifúndios das coisas do mundo e da imaginação. É nesse período que o ocidente começa a estabelecer os alicerces para um entendimento holístico, sistêmico e complexo, da realidade.
A obra de Detomi se insere na tradição pictórica da pintura de paisagem, mas, por estar impreterivelmente atravessada pelas questões próprias do nosso tempo, se constrói como um labirinto a ser decodificado.
Numa primeira aproximação, a sua produção nos remete à tradição clássica. Mas logo percebemos que não é o tecnicismo, nem a discussão do meio ou do gênero, que interessam ao artista. Algo enigmático e provocador de viés narrativo emerge de um olhar mais atento. Que narrativa é essa?
As obras desta exposição foram produzidas pelo artista durante a sua participação na residência artística do Red Bull Station, espaço situado no centro da cidade de São Paulo, fato que veio a impactar na sua metodologia de pesquisa e produção.
Habituado a criar a intervenções em paisagens previamente idealizadas - o artista inventava paisagens que intervia posteriormente com volumes que remetiam, ora a arquiteturas futurísticas, ora a objetos ritualísticos, espécie de menires e dólmenes de uma civilização pós moderna. O processo se inverte quando se dá seu embate com a metrópole, agora é o skyline que circunda o seu ateliê que passa a fundamentar a dinâmica. A silhueta dos prédios a sua volta, esquadrinhados na sua relação formal e política, compõem agora a primeira camada na construção da pintura. A natureza, ainda inventada, intervêm posteriormente à cidade.
A aridez do cenário, a gama tonal, e a ausência da figura humana, constante da sua produção, dão um ar metafísico às narrativas emergentes. Arrisco algumas suposições nesse sentido.
No primeiro método, aquele em que a idealização de uma paisagem precede a intervenção arquitetônica, e que o artista praticava até então, enxergo o rastro utópico do modernismo. É no projeto, que um futuro grandioso nos espera. Futuro em que a natureza selvagem será domesticada pela inteligência humana.
Por outro lado, nas obras da série "Estado Transitório”, aqui expostas, distingo uma perspectiva distópica. O futuro chegou, e foi embora. As promessas de um mundo melhor deram lugar às incertezas de um presente caótico e estilhaçado. Das utopias modernistas, se desprendeu, como um bloco cai de uma geleira, o Antropoceno, momento em que o impacto da intervenção humana sobre o planeta requer a fundação uma nova era geológica.
Aqueles que acompanham e conhecem a produção do artista poderiam se perguntar qual o fundamento, retórico, poético, metafórico ou ainda alegórico destas afirmações em vista da proximidade formal entre a produção aqui presente e obras de séries anteriores. Por um lado, argumentaria que a pincelada de Detomi, vigorosa, ousada e despretensiosa, dispara em mim um tipo de pensamento expansivo e associativo típico de uma obra aberta, em contraste à experiência que vivencio ante uma obra de De Chirico, cuja atmosfera melancólica me introjeta nos limites da janela. Assim, pequenas e imperceptíveis variações na articulação de elementos bastante próximos como as aqui elencadas, tendem a propiciar leituras divergentes. Por outro lado, tendo acompanhado o processo do artista, meus devaneios nascem da intuição de que Detomi pousa a sua mirada naquilo que falta. Daí que, se num primeiro momento da sua produção a natureza era ainda uma tela em branco a ser completada pela cultura, subjaz na sua produção recente a ideia de que para refundar a civilização, a natureza tivesse que varrer completamente os excessos da contraparte, e assim dar lugar ao novo. Imagens como a de um menir no meio do nada, ou ainda a possibilidade de uma construção histórica nos moldes de Stonehenge habitam o nosso imaginário, a de um único prédio de vinte andares no meio do campo não.
Fernando Velázquez
12/2017
[1] Cauquelin, Anne. A Invenção da Paisagem. Martins Fontes, São Paulo, 2007.