SAGOMA
Sagoma, termo que em italiano quer dizer tanto “silhueta” quanto “molde”, intitula a presente exposição do artista Henrique Detomi, na “Piccola Galleria” da Casa Fiat de Cultura. A mostra traz parte de sua produção em pintura à óleo sobre madeira e outras superfícies, além de esculturas. Estes trabalhos são fruto da pesquisa do artista acerca das questões dos suportes e da linguagem.
A relação feita por Detomi entre pintura e escultura parte de um mesmo projeto conceitual, o qual dá a ver uma forma que, com a licença do paradoxo, presentifica certas ausências. Nas paisagens pintadas identificam-se matizes telúricos, com preponderantes tons de marrom, interrompidos por cortes mais ou menos geométricos que geram imensas lacunas. As ausências vistas nas pinturas – as lacunas – são resultado do uso de máscaras, sendo feitas, assim como determinada prática escultórica, “por remoção”. Já os objetos escultóricos expostos se dividem em dois elementos: uma espécie de monólito em cujo centro se exibe uma cavidade, localizado num canto da galeria e que é confrontado, no lado oposto, por outro elemento escultórico, de mesmo material. A sutil provocação do artista faz com que nosso olhar, tendo passado pelas pinturas, possa ingenuamente supor que um objeto escultórico faça as vezes do “preenchimento” da parte que falta ao outro. Esse jogo diz, no entanto, de faltas enquanto como marcas irredutíveis, não equiparáveis.
A paisagem, vale lembrar, é um gênero pictórico concebido como retratação do “real natural”, ou seja, produz “porções de espaço delimitadas por uma janela pictórica”, como sugeriu Marcos Hill (2017) ao parafrasear Alain Roger. No entanto, desde o primeiro momento em que ela aparece como protagonista em pintura, especialmente no ciclo de afrescos “Alegoria e Efeitos do Bom e do Mal Governo” (1338-1339), de Ambrogio Lorenzetti – ainda hoje conservados em Siena, na Itália –, a paisagem é um instrumento normativo de definição do imaginário acerca do mundo. O que quer dizer que sua distância da imprevisibilidade e inconstância inerentes à natureza faz com que seu retrato desdobre de maneira linear um esquema pré-determinado cujo significado, portanto, já está dado, como notou Rosalind Krauss (1973). Ou seja, a paisagem é verossimilhança, isto é, a produção de uma imagem que corresponde não ao que o mundo é, mas ao que ele deve ser.
Henrique Detomi, ao entrelaçar artificial e natural no interior da paisagem dos trabalhos de SAGOMA lança uma solução ao mesmo tempo plástica e pictórica para o problema da construção-condução do imaginário – que é, aliás, também um problema político contemporâneo. De certo que, numa primeira impressão, a fantasmagoria dos cortes nas telas, assim como a lacuna no monólito de terra, poderia remeter à ação predatória do homem sobre o ambiente, como na mineração. Isto, como o encaixe das porções de terra na citada escultura, poderia, todavia, seguir como sugestão, mas não leitura última. Afinal, se os fragmentos são irredutíveis uns aos outros, eles permanecem incompletos, tornando-se silhueta, ou seja, um contorno traçado a partir de uma sombra, de um resíduo: e, neste sentido, é como se a obra gerasse antes máscaras que realidades objetivas ou desejáveis. Com isto, de uma crítica ambiental e circunscrita passamos a uma epistemológica, pois não é (somente) a ação predatória do homem que está em jogo, mas a própria ideia de paisagem, ou, enfim, de natureza – da qual a destruição do mundo, ressalva-se, poderia ser uma das manifestações.
Se, finalmente, os cortes nos panoramas fazem o mundo escapar ao observador, as porções de terra, mesmo com suas arestas um tanto lapidadas, não são daí decorrentes, sendo incertas suas origens. Assim SAGOMA, de Henrique Detomi, produz imagens e volumes nos quais homem e ambiente não se dividem entre sujeito e objeto, forma e fundo, simulacro e ideia, aparência e essência, natureza e história; mas são partes, dispostas horizontalmente, sem um todo. O que nos impede de situar e nos faz perguntar – quem é a silhueta de quem?
João Guilherme Dayrell e Marina Câmara.